Nos últimos tempos do meu macerado corpo na Terra, eu procurava levantar as camadas endurecidas que escondiam aquelas curiosas experiências a que havia assistido, e queria ver se o meu espírito doente, no corpo doente, podia, numa acuiddade suprema, prever a verdade do singular mistério da morte. Mas ele recuou mais uma vez, ante a seriedade de uma coisa para que se confessara fraco.
E eu, que não queria extinguir-me, armei dentro em meu peito um luminoso altar ao Deus de minha mãe: afervorei-me a ele, e reflecti: - Deve ser verdade a existência de Deus e da vida eterna.
Uma ideia não atravessaria os tempos, sempre firme e sempre grande, vencendo todos os obstáculos que a maldade dos homens lhe tem anteposto, se não fosse a eterna e indestrutível verdade.
E depois minha mãe crê, e quero crer também.
Tenho espalhado tanto riso, e concentrado tanta dor, que bem posso agora pôr a minha alma a rir, no momento final em que o meu alquebrado corpo vai consumar a dor derradeira.
Assim passei.
O meu «eu», mineiro empobrecido e alquebrado da mina da ironia, entrou na vida sonhada e crida, à força de vontade, e sorridente e feliz, por ter despido o porco escafandro em que atravessara esse imundo charco, que se chama - mundo.
Nunca tiveste a sorte grande, não?
Não; mas os que a hajam tido que te expliquem a sensação de assombro, de alegria doida, que os toma no terem a almejada notícia. Entretanto eles não jogaram nunca senão para terem essa sorte.
Ora foi o que me aconteceu.
Nos últimos momentos que vivi nesse vale de lágrimas... de crocodilo, enclavinhei as minhas unhas de náufrago na tábua da derradeira esperança no ressurgimento, como um jogador «enragé» na esperança da sorte máxima. Pois fui tomado de igual assombro ao ver que essa sorte me tinha saído, e que este corpo, só de ossos feito, jazia estatelado no fofo colchão onde finalizou a sua marcha, e eu - o meu apetecido «eu» espiritual - me despegava dele como de uma véstia inútil e sebosa, saindo daquela desengonçada prisão, como um pintassilgo de uma gaiola velha.
Não sei se o pintassilgo, ao sentir-se livre, canta imediatamente hinos à liberdade querida; eu é que, confesso, não me senti logo com muita vocação para a cantoria.
É que nesse ramo da «bell' arte di canto» fui sempre um desgraçado.
Trauteava às vezes, baixinho, a medo de me surpreender eu próprio no estranho caso, um fadinho brejeiro ou uma modinha de Vila do Conde; e qualquer dessas coisas não tinha na grandeza a solenidade do acto, nem o «entrain» de uma «marseillaise» celestial; por isso senti grande embaraço na conjuntura.
A minha consciência - o tal guarda-livros a que anteontem te aludi - deu-me um repelão furioso e tirou-me da dificuldade; e cruzando os braços diante de mim, perguntou-me em fera catadura:
- Vamos, «blasé»; vamos, vencido da vida (oh! oh!); vamos, ironista; vamos, idiota, dize lá o que fizeste.
Por onde andaste com esse fenomenal riso de parvo?
Que bagagem dás ao manifesto, ao passar a aduana celestial?...
Senti-me aterrado.
Nunca nas minhas mais fantásticas concepções imaginei que houvesse aqui uma sucursal da aduana portuguesa.
Era a mesma delicadeza e a mesma curiosidade!
Estaquei de assombro, e reflecti que devia ser bem poderosa a minha pátria lusa, para estender as suas raias além da imortalidade. Procurei equilibrar-me, e relfexionei: - Vamos, tendo de haver aqui guarda fiscal e não sendo francesa, prefiro então que seja minha patrícia. E quis parlamentar.
Mostrei a minha rica bagagem.
- Olhe, aqui tem. Este é o crime da Estrada de Cintra - o meu primeiro crime...
Abriu os olhos e respondeu:
- Isto aqui não é Boa-Hora. Diga o que traz. Eu não tenho nada com os seus crimes...
- ... «O Crime do Padre Amaro»...
- Já lhe disse que isto aqui não é a Boa-Hora... que tenho eu agora com o crime do Padre Amaro?... Padres criminosos têm aqui passado muitos...
- ... «O Primo Basílio»...
- Não preciso conhecer a família... Adiante.
- ... «O Mandarim»...
- Mau! Você está a brincar comigo? Que tenho eu com os mandarins? Nós não estamos na China, no Celeste Império, estamos no império celeste.
Achei graça ao trocadilho garrídico do Cérbero aduaneiro, e continuei:
- «Maias», «Fradique Mendes», «Relíquia», «Cidades e as Serras», cartas de várias partes do globo terráqueo, artigos de revistas, jornais, contos...
- Homem, pare lá! Mas que tenho eu com isso?...
Fez-se luz para mim. Esquecia-me de que a guarda fiscal portuguesa não sabia ler!!!
- Pois, senhora guarda fiscal, não trago mais nada útil.
- Pois, senhor viajante, será mais verdadeiro se disser que não traz nada útil.
Bagagem avariada, bagagem avariada!
Pode passar sem pagar despacho, mas não lhe auguro nada de bom aí mais para diante. Vai suceder-lhe como à cigarra de La Fontaine: - cantou mas vai dançar agora...
Aterrorizei-me. Que me iria suceder?
Eça de Queirós, Póstumo (pp. 29 - 32)